Porra pá
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Gungunhana senta-te
Aonde ?
No chão.
Está sujo.
Senta-te !
O negro imperador dos vátuas, calou o seu português cosmopolita, dobrou-se, em pose cinéfila, sobre o enorme corpanzil e ajoelhou aos pés do capitão Paiva Couceiro/Jorge Brum do Canto, sob ameaça da sua afiada espada. Os soldados, limpinhos e austeros na sua farda engomada, olhavam embevecidos para as mamas ao léu das negras mais belas do casting. Nesta cena do filme Chaimite concentra-se o climax da acção. Os guerreiros figurantes do régulo, batem nos escudos em sinal de submissão ao poderoso rei dos portugueses.
Os espectadores sentados em frente do ecran improvisado na parede da igreja, acompanham-nos batendo palmas. A fita dá as últimas voltas nas bobines do projector do SNI, as imagens de sombra e luz apagam-se, depois da palavra fim. O equipamento de projecção regressa à camioneta da propaganda, como era conhecida, para partir para outra aldeia na sua missão de levar a cultura do regime do Estado Novo ao velho país rural.
Gungunhana senta-te
Aonde?
No chão.
Está sujo.
Senta-te!
O pequeno David /Barra Gungunhana de cara negra de carvão, começa com o máximo realismo o ritual de imitação, mas o Penina /Barra Paiva Couceiro ignora o guião e descarrega-lhe a espada/ pedaço de pau no lombo esquelético.
-Despacha-te preto nojento, disse o Penina arvorado em capitão, sem farda.
Gungunhana Barra David caiu redondo na terra enlameada pela última chuvada, escondendo a cabeça entre as mãos, em boa hora, pois já o Paiva Couceiro Barra Penina lhe assentava outra traulitada mesmo no toutiço.
A tropa de maltrapilhos de palmo e meio, meio rotos, meio descalços olhava incrédula. Dos olhos do David Barra Gungunhana jorravam rios de lágrimas que lhe transformavam o rosto assustado e preto de carvão da forja do seu pai ferrador, numa paisagem de filme de horror.
-Deixa-me, dizia o pequeno David numa voz entrecortada de soluços, enquanto o Penina continuava a malhar sem piedade. Os seus lancinantes gritos ecoavam até nos corações mais empedernidos. E não fosse eu, (figurante/soldado daquela encenação e agora narrador presente), tão franzino e o alarve do Penina tão avantajado ter-lhe-ia dado um valente pontapé numas partes bem sensíveis. Contrariado, engoli a minha raiva, mas não consegui evitar que o coração quase me saísse do peito e uma lágrima furtiva e teimosa fizesse o seu papel libertador de escape de emoções.
Ouviu-se então o Tomás, um calmeirão e subcomandante que queria ser oficial da marinha (e foi) que olhando ameaçador para o Penina disse: -pára idiota, deixa o desinfeliz …porra pá, isto não é uma guerra a sério! E enquanto o Penina se afastava, como cão rafeiro com o rabo entre as pernas, agarrou no David, levantando-o do chão e dizendo-lhe, numa voz em transição enevoada por fragmentos de ternura: -desculpa…e mudando de tom: porra pá (começava sempre assim e acho que ainda começa) …olha, ao menos aprendeste que se não é fácil ser preto, mesmo em terra de pretos, ser preto e Gungunhana é uma porra em terra de brancos.
Gungunhana Barra David nasceu e morreu ali naquela tarde de brincadeira, mas o David Barra Gungunhana ficou bem vivo e guardado numa gavetinha da minha memória. Hoje é o dia em que o liberto e ressuscito em letra de forma, até porque estou convicto que pelo menos no mundo / ficção o Penina não lhe pode fazer mal.
MG
Recorde: