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Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

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António Simplesmente

 

Tempo de corvos

 

Dias depois de completar doze anos, António ia partir para Viseu. Enquanto esperava pelo comboio na companhia da sua mãe, lembrou-se do primeiro dia em que frequentara a escola primária e do ar curioso e assustado dos meninos que com ele ocupavam a mesma trincheira da pobreza. Nascer pobre numa aldeia de um país periférico e atrasado significava, no final conturbado do século XIX, ter como destino a vida dura e austera de gerações de camponeses cujos horizontes se perdiam nas faldas da serras adamastóricas que aprisionavam vidas e sonhos. A fuga consentida para os jovens, com pacto secular com a miséria passava pela missão de servir nos caminhos do Senhor. Esse passo maior que as suas débeis pernas ia António dá-lo naquela manhã submersa a caminho do Seminário menor. Quando a máquina que se arrastava envolta numa nuvem de fumo, assomou da última curva e se aproximou da estação, pouca terra, pouca terra, António menino que queria ser forte,  sentiu as pernas fraquejar e não conseguiu segurar uma lágrima que teimosamente lhe acarinhou o magro rosto. Um apito estridente, logo abafado por um longo silvo que escorregou pelas profundezas do vale do Dão, pôs aquela engrenagem de ferro e fogo em marcha cada vez mais acelerada. António encostado ao ombro da mãe, viu no cais os braços das irmãs a afastar-se como se resolvessem viajar para outras paragens. Mas para além da ilusão óptica, quem se afastava para um mundo povoado de sotainas pretas era ele.

 

Por detrás daquele muros rigorosamente vigiados, onde se produziam os discípulos de Pedro, os dias passavam sempre iguais: aulas, rezas, missas, tudo muito condimentado com muita disciplina castigos divinos e terrenos para quem não respeitasse as regras. Deitado na sua cama, nas longas noites de Inverno, António saltava todas as barreiras e voava para Oliveira do Dão e para a liberdade de correria, tanto quanto lho permitia o seu pé defeituoso, pelos campos abertos, agitando os milheirais, espantando a passarada do fim do dia, mergulhando nu nos pegos da ribeira (com os poucos moços que com ele se identificavam), nos  dias quentes de estio ouolhando a menina dos olhos verdes que à tardinha o espreitava da janela e com quem se via a passear de braço dado depois da missa domingueira. Mas quando regressava do devaneio entristecia profundamente. Como seria possível se ia ser padre? Que raio de vida a do pobre! 

 

António bem recomendado pela mãe e pela madrinha D. Efigénia, que lhe destinou a carreira eclesiástica , cumpria religiosamente as tarefas de seminarista. Habitou-se a sobreviver naquele meio hostil à sua natureza rural. Estabeleceu com os companheiros Américo e Marcelo uma cumplicidade que permitia amenizar  o ambiente soturno e escuro do seminário. Depois da missa de domingo davam uma volta pela cidade. As suas sotainas pretas distinguiam-se no meio do colorido que animava as ruas do centro. Donzelas provocadoras, olhavam-nos com malícia como tentações saídas do inferno. Pares de namorados circulavam em amena cavaqueira como se pertencessem a outro mundo. Regressavam ao Seminário esquecidos do cinzentismo que ajudavam a compor, mas com grandes interrogações próprias da adolescência. Desafiando o pecado não conseguiam tirar da mente a imagem daqueles corpos femininos que observavam nos seus passeios e na solidão das retretes não conseguiam fugir à sua natureza humana pecaminosa aliviando os seus impulsos sexuais. Anos antes quando esses desejos começaram a perturbá-los viram-se inocentemente a praticá-los em conjunto, chegando a fazer campeonatos de produtividade.

 

Um dia, ao abrir a sua Bíblia, António encontrou uma estranha mensagem. Com a  ajuda dos amigos procurarou descobrir o seu autor. Pela caligrafia associaram-na a Salomão um jovem estranho e portador de um olhar triste. "Se quiseres podemos ajudar-nos. Desabotoa dois botões da batina como sinal". Américo e Marcelo pensaram, pensaram e disseram a António:

-Não podemos entrar nos quartos dos outros, mas como as portas ficam abertas vamos espreitar o Salomão. Deslizaram como sombras ao longo do corredor e colados às paredes cinzentas foram-se aproximando do quarto suspeito. O silêncio do recolher pesava como chumbo. Os seus pés procuravam levitar para não despertarem nenhum demónio. Junto da porta olharam para o interior do quarto e os seus olhos não conseguiram enxergar no escuro denso, mas sons estranhos escapavam para o corredor. Um chiar de molas cansadas misturados com gemidos abafados desafiavam o silêncio obrigatório. Ao longe começaram a ouvir-se passos arrastados de pelo peso dos anos. A figura colossal do Director começou a vislumbrar-se na penumbra. Os três mosqueteiros da sobrevivência afastaram-se a tempo de um castigo exemplar.

 

Quando voltou para o ùltimo ano no Seminário menor António já não encontrou Salomão, tinha sido expulso. O grupo de António não sentiu a sua falta e este comentou para os outros:

-Ao menos livrou-se desta cruz. E nós conseguiremos?