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Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

 

Enquanto empurrava o carrinho de compras e reflectia sobre o sarilho em que nos meteram os políticos, vi o carro estacionado com uma figura esfíngica, no seu interior, a acenar-se. Sem conseguir identificar a personagem, correspondi por uma questão de boas maneiras e continuei o meu percurso.

 

Depois de arrumar o carrinho e recuperar a moeda,que os tempos não estão fáceis, verifiquei que  o movel continuava no mesmo sitio com o condutor a cumprimentar-me insistentemente. Senti que pretendia contactar-me. Aproximei-me da viatura e debrucei-me sobre  a janela aberta.

 

-Como está ,disse, uma voz saída de um corpo esquelético e de uma boca que quase submergia debaixo de uns enormes óculos escuros. Perante a minha cara de espanto , a voz replicou.

 

-Não se lembra de mim? o  cabelo, de facto, está diferente, expressando-se em minúsculas para respeitar o acordo ortográfico. Entretanto ia tirando a máscara raiban e mostrava uma cara macilenta de fuinha, de um ser algo andrógino. Rebusquei, um pouco comprometido, nos sítios mais recônditos da minha memória mas em vão. A estranha  personagem, olhava-me com um ar acusador e cada vez mais enigmático. um silêncio de chumbo parecia eternizar-se . Arrisquei:

 

- De onde o conheço? Será da escola? Quando se lida com centenas de alunos durante anos é impossível guardar com nitidez a imagem de tanto rosto. E ele, continuando a pôr à prova a minha incredulidade disparou:

 

- Veja lá...Pedro não lhe diz nada.

 

- Pedro só por si não, pode ser mais concreto, disse,cada vez mais comprometido com a minha falta de memória, mas já  esclarecido sobre o sexo do indivíduo, não da sua sexualidade.

 

- O Pedro da farmácia, afirmou peremptório...Há sim , respondi, sem muita convicção, mas está tão diferente...vocês jovens mudam muito...nunca o reconheceria.

 

- Compreendo, como nós dizemos,vocês é que estão sempre na mesma, mas agora já não estou na farmácia, estou na Worten( não cobrei taxa publicitária) e se precisar de alguma coisa vá visitar-me. Tome o meu número de telemóvel e estendeu-me, numa mão raquitica  um papel amarrotado.

 

- Concerteza, se precisar irei, disse enquanto me despedia com um "prazer em vê-lo" de circunstância, aliviado por ter terminado este diálogo quase absurdo.

 

 

Quando me afastava, ouço de novo o motor do carro aproximar-se, parar e sair do seu interior um corpo esguio , quase transparente, que me colocou nas mãos uma caixa, ao mesmo tempo que dizia "guarde é uma lembrança". Agradeci e fui-me a afastando com a embalagem, onde se lia eau de cologne, mas o som da voz estridente recusava abandonar-me!

 

- Espera...nós recebemos um prémio de compensação de encomendas e em vez de ir para outro vai para ti. -"Chega aqui", ordenou. Agastado, mas rendido pela persistência, aproximei-me do carro. O lingrinhas, pegou numa bolsa que continha o que parecia ser uma máquina de filmar e depois de uma brevíssima informação sobre o produto entregou-ma, "guarda é para ti".

 

 Algo atarantado, fiquei com o objecto nas mãos ao mesmo tempo  que balbuciava: - mas ...não quero...não preciso. E ele, "fica com isso, é um último modelo, enquanto tirava do carro outra e outra bolsa idêntica, que me ia entregando. De repente e já sem mãos para segurar tanta generosidade, meio anestesiado, caí em mim e senti-me a pensar: mas que é isto? que te está a acontecer? Fui buscar coragem  e discernimento nem sei onde e atirei os objectos para o banco da viatura do trinca-espinhas. Este, ofendido, insistia "pega nisso" porque não posso entrar com o material...e eu "não quero, não tenho nada a ver com isso".

 

Segui o meu caminho durante uns bons metros, aliviado por me livrar daquela sarna inesperada, levando sem me aperceber a caixa de perfume. De novo  pressenti estar a ser perseguido. As palavras saíram marteladas pela janela aberta:

 

- Ao menos dá-me 10% que é o imposto do perfume; custa cem euros. Atirei a embalagem para dentro da viatura e afastei-me sem mais comentários, enquanto via, com alivio, o carro a afastar-se e a voz a sumir "depois telefone".

 

Moral da história: Se um conhecido(?) desconhecido(a) lhe entregar um perfume, mesmo em tempos de crise, isso é... vigarice.

 

MG