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Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

Para o leitor compulsivo entrar numa livraria é como para o crente religioso entrar na sua igreja. Com respeito e devoção. Percorre os altares, no caso prateleiras, Presta veneração aos santos, ou seja aos livros e aprecia os milagres que fazem na mente dos fiéis, os seus leitores. De quando em vez, arranca um livro à pasmaceira do seu dia-a-dia e consulta-o, porque o livro gosta de ser folheado e de partilhar com o leitor a sua intimidade. Acredito que livro sem leitor vive triste e aborrecido.
Depois da minha visita às estantes e de tirar do seu sono um ou outro exemplar, faço a minha opção, vejo se nos sentimos bem um com o outro e dirijo-me ao altar, digo caixa, para concretizarmos a relação, sempre por intermédio de um sacerdote ou sacerdotisa, a quem pago os respectivos emolumentos. Mas hoje, antes de me decidir, assolou-me o espírito uma dúvida que precisei de esclarecer. Dirigi-me à menina da caixa, que verdade seja dita, estava a concluir um contrato com outro cliente, Mas a minha questão era simples, coisa de sim ou não e arrisquei perguntar, infringindo a cerimónia em curso. A rapariguinha olhou-me de soslaio e disse: -“aguarde, pois estou a atender este senhor”.
Amochei. Que mais podia fazer. Eu sou prático e não gosto de complicar. Eu não, mas o meu outro eu, um pouco mais rebelde, e que vive escondido dentro de mim, logo começou a especular.


-Mas porque carga de água esta pitonisa de tranças pretas, não me diz sim ou não, obrigando-me a ficar a secar sem necessidade? Vendo as coisa pelo prisma que me é favorável, digo que se calhar engraçou com os meus lindos olhos e que me quer-me manter aqui em observação. Mas vendo as coisas do avesso, como numa pirâmide invertida, pode querer castigar-me por ousar interrompê-la no seu mister. Até me imaginei a captar o seu pensamento:-“aguente aí ó cota atrevido. Já tem idade para aprender a respeitar as precedências e a esperar pela sua vez".

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Passado algum tempo o tal que vive escondido atrás das aparências, deu de frosque e foi refugiar-se nas páginas de um livro que, ao menos, esse nunca contesta. Quem o acolheu foi o escritor Mário Vargas Llosa, que aprecio na arte de bem pensar e melhor dizer. Estava ali um exemplar, meio oferecido, a fazer-me olhinhos, por acaso, o primeiro do autor e que ainda não li. E diz-se, na galeria dos lugares comuns, que não há amor como o primeiro, nem luar como o de Janeiro. Mas isso não sei porque, mês acabado, não lhe pus a vista em cima.
Quem me pôs a vista em cima, ou melhor os “olharápios” pintados de azul celeste, lindos, foi a rapariguinha da caixa, que se aproximou sorrateira. –Peço desculpa. O que desejava? Que óptimo livro que está a observar, que grande escritor, adoro”! Pois, balbuciei, para logo ser interrompido pelo eu clandestino


_o que tu queres, ó serigaita, sei eu, ou por outro lado penso que sei, o que não sendo idêntico vai dar ao mesmo. Vens-me agora com a tanga da conversa fiada, armada em gata , à espera que lhe façam festas que lhe ericem o pelo”.


-Pois, senhorita tem muito bom gosto, consegui dizer antes do intrometido me embaraçar, de novo, o discurso de conveniência.


“ Bom gosto? O que ela tem é um bom corpinho, nem muito gordo, nem muito magro, nem muito alto nem muito baixo. Na conta. Deixa-te mas é de literatices, ó palerma, afina o paleio e vê se a convidas para tomar um “shope”. Há tontas que se deixam levar por umas larachas. Aproveita. Não tens a vida toda.


-Então, mas qual era a dúvida? Insistiu a rapariguinha. –Nada, respondi, já está esclarecida. Vou levar este livro. Interessa-me. Tenho um fraquinho por este escritor, no que diz respeito à sua escrita, bem entendido.


“E também começo a ter um fraquinho pela senhorita, assim como uma chama que começa a crescer, a crescer” acrescentou o eu alternativo.


O que vale é que o bisbilhoteiro, só tem meios de pensamento, mas não tem formas de expressão, senão estava o caldo entornado. Paguei. Saí na companhia dos “Cachorros” . A rapariguinha da livraria, com os seus olhos de mar, o seu corpo de sereia, o seu peito de onda de surf, ficou na livraria com o meu eu escondido. O que se passou depois não sei. O que sei é que fiz o meu papel de cronista do
cota-diano.