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Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

 
 
Entrei a carruagem do metro a uma hora tardia. Hora morta, diz a voz corrente. Pouca gente e muitos lugares vazios. Sensação de vazio. Sentei-me num lugar junto à janela. Reminiscência da mítica idade infantil, quando fazia birra para ter um lugar com vista para a paisagem, nos comboios que  “pouca terra, pouca terra”, pintavam a paisagem de cinzento, com o fumo que exalavam, como fumador viciado, da chaminé da máquina a vapor.
Reparei que à minha frente se sentava outro passageiro da noite, melhor, outra passageira, de longos brincos nas orelhas e olhos amendoados. Sem dúvida uma asiática das terras de além mar. Trocámos um primeiro olhar fugidio. Pareceu-me vislumbrar um discreto sorriso na sua boca bem desenhada. Ao seu lado repousava um trólei de viagem. Não sou, por timidez congénita, de meter conversa com estranhos. Nunca sei como começar. Dei voltas aos miolos para ver se encontrava um pretexto. Nada. Para mais não sabia que língua ela falava. Em línguas estrangeiras sou um desastre. Costumo citar Eça para me consolar: “devemos falar bem português, as outras línguas mal, orgulhosamente mal”. Retraí-me.
Numa segunda troca de olhares a menina de olhos de amêndoa sorriu e num português bem perceptível disse:
-Senhor, para ir para a Pousada da Juventude, saio nas Picoas?
Decerto já tinha sido informada, mas quis confirmar. Fez-me lembrar a minha avó quando viajávamos de comboio e tínhamos que mudar de linha. Fazia sempre a mesma pergunta a diferentes funcionários. Nunca se enganava.
-Acabei de desembarcar no aeroporto e é a primeira vez que faço este percurso. Venho do Japão, Nagasáqui. Vou estudar para a Faculdade de Letras.
-Sim, sai nas Picoas. Como se chama? disse, para tentar alguma aproximação
-Sou KumiKo
O que me veio à mente, via memória, foi uma personagem da Crónica do Pássaro de Corda de Haruki  Murakami.. A mulher do protagonista, chamado Toru, desaparecida no enredo da história. O mesmo nome. O cabelo preto curto. A vivacidade no olhar. Mas não podia ser. Simples coincidência. As personagens da ficção estão enclausuradas nas páginas impressas e só vivem na imaginação do seu criador, o autor, ou na recordação dos seus leitores.
-Também saio nas Picoas. Se não se importar ajudo-a a chegar à Pousada.
 E mesmo que não saísse passei a sair. Não ia deixar a menina sozinha aquela hora tardia, embora ela me parecesse bastante destemida. Também, em tempos idos, andei perdido no metro de Milão à procura de uma Pousada, e houve uma alma caridosa que me deu a mão.
-Fala bem português, disse para continuar conversa.
-Comecei a estudar português na Universidade porque me interesso pela cultura portuguesa. Venho aprofundar esse estudo. Tomei contacto com essa cultura no Secundário onde se faz alusão à importância dos portugueses na história do Japão e na sua unificação, para além de serem os primeiros europeus a chegar ao Japão. Se for possível quero, aqui, ensinar o japonês.
É verdade, pensei. O mundo é pequeno. Quatro séculos depois de três ousados aventureiros lusos, terem demandado, numa “casca de noz”, as costas japonesas, então isoladas do resto do mundo, vejo uma menina de olhos de amêndoa a aventurar-se num subterrâneo desconhecido de Lisboa, à descoberta de Portugal. Tantos séculos depois de homens montados numa cruz, onde acabaram por ser crucificados, talvez por terem convertido milhares de japoneses, aí está uma menina de Nagasáqui , confessa católica, possivelmente   descendente de mártires do século XVI, a conhecer o país dos namban (bárbaros do sul) . O mundo é mesmo uma grande aldeia apesar de haver quem queira dividi-la com muros em cada esquina.
A menina dos olhos de amêndoa ficou em segurança na Pousada. Palavra de escuteiro. Diz o ditado que “burro velho não aprende línguas”, mas se Kumiko  vier a dar aulas de japonês talvez ainda vire burro novo e lá estarei a aprender, como um bom aluno. E quem sabe se ultrapasso a minha inapetência para línguas estrangeiras. Para Já fica garantido esse compromisso na crónica do
Cota-diano.
 
29 Jan, 2018

Amor às livrarias

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 Livraria Lello, um local de culto, com o seu altar. Imagem NET.

 

Na aldeia onde eu nasci não havia livrarias, mas havia livros. Na casa do meu avô, alguns, na pequena biblioteca da escola, mais alguns, na biblioteca itinerante Calouste Gulbenkian, muitos mais. Foi aí que começou a minha relação com os livros, sempre aberta, curiosa, expectante.

Nem nas pequenas vilas concelhias as livrarias eram vulgares. Quando muito, havia papelarias que vendiam alguns livros. Se quisesse entrar numa livraria tinha de ir a uma capital de distrito, onde existia uma ou outra. Mas livrarias de grande dimensão só se mantinham nas maiores cidades. Assim o contacto com os livros não era nada fácil.

Apenas quando passei a residir na capital do país é que tive oportunidade de ter acesso a uma livraria digna desse nome. No entanto, nessa altura as livrarias eram muito diferentes do que são hoje. Mais intimistas, mais personalizadas. Recordo as da baixa lisboeta, algumas já desaparecidas. Recordo os velhos alfarrabistas. Recordo a antiga Barata nas avenidas novas.

Hoje, os livros, ganharam carta de alforria e estão ao alcance do leitor nos ditos supermercados, em convívio com detergentes, bolachas, ou bebidas. É aí que melhor sobrevivem à escassez de locais próprios de venda. Mas, para mim, o encontro com livros continua a ser nas livrarias. E embora elas se insiram nos grandes espaços de consumo, continuam a fazer-me o apelo de sempre. Ali começa o meu encontro com o livro, o primeiro bate-papo, que muitas vezes acaba em união de facto, quando o trago comigo como um amigo para a vida. Ali me perco e me encontro, nas páginas de um livro aberto.

A livraria é como a igreja para o crente. Um local de culto ao saber, preso no papel impresso, mas ao mesmo tempo livre para ser descoberto por qualquer leitor interessado. Uma religião aberta, sem dogmas, sem credos, tão livre, como o livre pensamento.

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 Vivemos tempos estranhos. A democracia, que permitiu, ao povo decidir com o seu voto o exercício do poder político, está a ser desvirtuada pelo poder judicial. Nos dias que correm temos visto os juízes exercer um poder que não lhes pertence para condicionar a livre escolha dos cidadãos.

O caso mais paradigmático está acontecer nesse grande país chamado Brasil. A destituição de uma Presidente democraticamente eleita pelo poder, algo discricionário de juízes, devia alertar-nos para a perversão do sistema democrático. Em relação à destituição referida não ficou provado qualquer ilícito. O que ficou provado foi que uma maioria de deputados de direita, de conluio com os seus aliados no sistema judicial, deu um golpe antidemocrático para tirar a esquerda do poder, e colocar no seu lugar a direita, na pessoa, essa sim corrupta, de Temer, um personagem sem alma.

O que se está a passar com Lula vai na mesma linha. Com maioria nas sondagens, está proibido de se candidatar, ou seja, de ganhar. Lula foi um bom Presidente, melhorou a situação económica e diminuiu as enormes desigualdades sociais, actuando na repartição da riqueza, com prejuízo para os poderosos interesses económicos. Essa é a explicação mais plausível para justificar a perseguição que a direita lhe faz, afastando-o da política. Aquilo de que é acusado, parece não passar de uma cabala. O poder judicial, deitou às urtigas a isenção e está claramente, ao serviço do poder da direita política.

No Brasil, até ver, passou a fase do poder na ponta da espingarda. Em seu lugar levanta-se outro poder, também antidemocrático, que é o poder discricionário dos homens de toga, que não possuem para o efeito qualquer legitimidade democrática. Usando o seu poder para inventar provas, para acusar, para condenar, estão a criar uma República de Juízes, à margem do sistema democrático. O que existe no Brasil já não é uma democracia é uma juriscracia. O seu objectivo é claro, afastar de vez a esquerda do poder. Eliminando politicamente todos os candidatos com hipóteses de vencer, a perpetuação da direita, e da exploração, está garantida. O Brasil está a caminho de ser de novo um estado Totalitário, perante alguma indiferença dosdemocratas.

Durante o tempo em que aqui pouco escrevi, não fiquei numa espécie de sono expectante, à espera que alguma musa me acordasse. Não acredito muito em musas e se, acaso, existem, têm muitas solicitações. Fui escrevendo, noutros espaços, nomeadamente no "escritartes" um site de literatura. Desse período recupero o texto que a seguir publico.

 

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 Para o leitor compulsivo entrar numa livraria é como para o crente religioso entrar na sua igreja. Com respeito e devoção. Percorro os altares, no caso prateleiras, Presto veneração aos santos, ou seja aos livros e aprecio os milagres que fazem na mente dos fiéis, os seus leitores. De quando em vez arranco um livro à pasmaceira do seu dia-a-dia e trago-o comigo, porque livro gosta de ser folheado e de partilhar com o leitor a sua intimidade. Acredito que livro sem leitor vive triste e aborrecido.

Depois da minha visita às estantes e de tirar do seu sono um ou outro exemplar, faço a minha opção, vejo se nos sentimos bem um com o outro e dirijo-me ao altar, digo caixa, para concretizarmos a relação, sempre por intermédio de um sacerdote ou sacerdotisa, a quem pago os respectivos emolumentos. Mas hoje, antes de me decidir, assolou-me o espírito uma dúvida que precisei de esclarecer. Dirigi-me à menina da caixa, que verdade seja dita, estava a concluir um contrato com outro cliente, Mas a minha questão era simples, coisa de sim ou não e arrisquei perguntar, infringindo a cerimónia em curso. A rapariguinha olhou-me de soslaio e disse: -“aguarde, pois estou a atender este senhor”.

Amochei. Que mais podia fazer. Eu sou prático e não gosto de complicar. Eu não, mas o meu outro eu, um pouco mais rebelde, e que vive escondido dentro de mim, logo começou a especular. –

“Mas porque carga de água esta pitonisa de tranças pretas, não me diz sim ou não, obrigando-me a ficar a secar sem necessidade? Vendo as coisa pelo prisma que me é favorável, se calhar engraçou com os meus lindos olhos e quer-me manter aqui em observação. Mas vendo as coisas do avesso, como numa pirâmide invertida, pode querer castigar-me por ousar interrompê-la no seu mister. Até me imaginei a captar o seu pensamento:-“aguente aí ó cota atrevido. Já tem idade para aprender a respeitar as precedências e a esperar pela sua vez." Lucubrações do outro eu,, que o eu este, ficou firme a fazer papel de sonso.

Passado algum tempo, o tal que vive escondido atrás das aparências, deu de frosque e foi refugiar-se nas páginas de um livro que, ao menos, esse nunca o contesta. Quem deu a vida ao livro refúgio, foi o escritor Mário Vargas Llosa de quem aprecio a arte de bem pensar e melhor dizer. Estava ali um exemplar, meio oferecido, a fazer-me olhinhos, por acaso, o que roubou a virgindade ao escritor e que ainda não li. E diz-se, na galeria dos lugares comuns, que não há amor como o primeiro, nem luar como o de Janeiro. Mas isso não sei porque, mês acabado, não lhe tenho posto a vista em cima.

Quem me pôs a vista em cima, ou melhor os “olharápios”  pintados de azul celeste, lindos, foi  a rapariguinha da caixa, que se aproximou sorrateira. –Peço desculpa. O que desejava? Que óptimo livro que está a observar, que grande escritor, adoro”! Pois, balbuciei, para logo ser interrompido pelo eu clandestino “o que tu queres, ó serigaita, sei eu, ou por outro penso que sei, o que não sendo idêntico vai dar ao mesmo. Vens-me agora com a tanga da conversa fiada, armada em gata , à espera que lhe façam festas que lhe  ericem o pelo”. Pois, senhorita tem muito bom gosto, consegui dizer antes do intrometido me embaraçar, de novo, o discurso de conveniência,

bom gosto? O que ela tem é um bom corpinho, nem muito gordo, nem muito magro, nem muito alto nem muito baixo. Na conta. Deixa-te mas é de literatices, ó palerma, afina o paleio e vê se a convidas para tomar um shope. Há tontas que se deixam levar por umas larachas pretensamente”  intelectualóides”.Aproveita. Não tens a vida toda."

-Então, mas qual era a dúvida? Insistiu a rapariguinha. –Nada, respondi, já está esclarecida. Vou levar este livro. Interessa-me. Tenho um fraquinho por este escritor, no que diz respeito à sua escrita, bem entendido.

“E também começo a ter um fraquinho pela senhorita, assim como uma chama que  começa a crescer, a crescer” acrescentou o eu alternativo.

O que vale é que o bisbilhoteiro, só tem meios de pensamento, mas não tem formas de expressão, senão estava o caldo entornado. Paguei. Saí na companhia  dos "Cachorros" . A rapariguinha da livraria, com os seus olhos de mar, o seu corpo de sereia, o seu sorriso de onda enrolada, ficou na livraria com o meu eu escondido. O que se passou depois não sei. O que sei é que fiz o meu papel de cronista do

 cota-diano..

 

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Os tempos não são os melhores para os blogues. As redes sociais, mais visíveis, mais leves,com as suas listas de amizade, prendem, a atenção dos navegadores da Net. Por essa razão, entre outras,este blog tem estado em modo de hibernação. Vai voltar, com um novo fôlego, cara lavada, e com a mesma linha de publicações, na medida do possível adaptada aos novos tempos. para se diferenciar de outros títulos, nomeadamente de colunas de opinião, passará a chamar-se, "Nação Valente, ao sul". Ao sul nascemos, ao sul vivemos, no sul habitamos como país e no sul nos sentimos bem.Assim será enquanto o mundo girar.

Para recomeçar, vamos dar música, mesmo a preceito e quem sabe por "encomenda". O cantor/poeta Sérgio Godinho acabou de lançar o novo album, ao qual deu o título "Nação Valente". Uma mera coincidência, mas todas as coisas têm o seu sentido, mesmo que pareçam não o ter. Pois então deliciem-se com a canção Nação Valente: "quero-te viva, afirmativa"