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Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

 

Fascículo I-Noite de terror e alegria

 

A noite em que ia nascer António Simplesmente, ficará na memória do povo de Oliveira do Dão como o princípio do apocalipse. Ao cair da tarde, daquele dia de Abril de 1889 pesadas nuvens de chumbo começaram a levantar-se para os lado de Montemuro. Com grande rapidez e empurradas por um vento uivante e gélido pararam ameaçadoras sobre a pequena e laboriosa aldeia beirã de Oliveira do Dão. Ao caír da noite, a tempestade anunciada começou o seu espectáculo de luz e som. Feixes faiscantes cruzaram o horizonte, ribombaram assustadores trovões, do céu caiu uma chuva que rapidamente transformou ruas em rios caudalosos. Parecia que os elementos mais trágicos da natureza se tinham reunido para se vangloriarem pelo menino tão esperado por aquele família humilde.

 

O pai do esperado nascituro, Zé da Avó, feitor das terras dos fidalgotes da terra, apercebeu-se da borrasca e mandou os criados de manjedoura recolher o gado, guardar em lugar seguro as alfaias agrícolas e dispensou-os a tempo de serem atingidos pelo temporal que pesava nas suas cabeças.

-Metam o gado nas arramadas e recolham-se em sitio seguro, pois isto está a ficar feio.

 

Zé assim que acabou de tomar as providências, saiu apressado da Úmbria dos soitos ainda a noite não se levantara. Ao chegar ao povoado começou a cair uma chuva que martelava o tosco empedrado das ruas sem piedade. O feitor era um homem simples que fora enjeitado pela mãe, depois desta ter sido escorraçada como cão sarnento pelo pai, por ter parido sem se lhe conhecer qualquer conversado. Foi criado pela avó, que o ensinou a ser um homem às direitas. Da mãe, sumida no mundo, nunca mais houve notícias e nem sequer se podia pronunciar o seu nome. 

Quando chegou às portas da aldeia o céu caiu-lhe em cima. Um rio vertical de água, fogo e sons estereofónicos quase o arrastavam para as profundezas do inferno. Lutador habituado a fintar as agruras da vida, estugou o passo mas sentia as pernas prisioneiros de forças telúricas que  queriam absorver o seu corpo alto e esguio. Encharcado da cabeça aos pés, arrastou-se com dificuldade envolvido por raios que quase o trespassavam. Quando puxou a taramela da porta de pinho do casebre onde pernoitava, já as quatro filhas, cujas silhuetas fantasmagóricas se projectavam na parede caiada eetavam prostradas em frente da lareira e invocavam numa lamúria sem fim os préstimos de Santa Bárbara.

 

O filho que ia nascer, esperava tranquilo na barriga da mãe, Maria Simplesmente. Indiferente, ou talvez não, ao desconcerto da natureza, continuava tranquilo e sem pressa de entrar no mundo que o reclamava. As águas que o envolveram espraiavam-se pelos lençóis de linho duro, onde a sua mãe se contorcia com dores a cada convulsão, ansiosa pelo desenlace. D. Sebastianina que assistira a tantos parimentos como cabelos tinha na cabeça, preparava um alguidar com água quente, enquanto animava a parturiente:-está quase Maria, só mais um esforcinho.

Maria Simplesmente era feita de outra massa. Tinha na sua ascendência gente de estatuto. Sabe-se de um capitão e até de um médico de província. A família entrou em caminho descendente mas a fina linhagem expressa nos genes continuou presente. Deram-lhe uma educação esmerada e chegou a ser regente escolar. O casamento com Zé da Avó foi uma paixão assolapada, tipo camiliano. Na modéstia e na pobreza o casal era feliz e para a felicidade ser completa, apenas lhe faltava um filho.

 

Zé d´Avó, mal entrou no aconchego do casebre, escarrapachou-se na panela trempe, que aquecida a mato, cozia o caldo de couves do jantar, procurando secar as roupas empapadas que escorriam água para o lajedo do chão, lhe enregelavam o corpo. Ainda não se tinha recomposto do susto, nem encontrado lucidez para perguntar pela mulher em vias de parir quando D. Sebastianina saiu do quarto com um recem nascido nos braços. Da toalha escura onde vinha embrulhado escorregavam uns alvos pezinhos. Zé aproximou-se emocionado...que diabo, afinal era o varão da família que acabara de chegar. Uma alegria breve invadiu Zé d`Avó porque dee repente rodopiou nos tacões cardados das botas e escondeu a cara entre as mãos. As filhas, com licença de Santa Bárbara, aproximaram-se do pai. Duas grossas lágrimas como rios incontroláveis corriam-lhe pelas rugas e serpenteavam entre os pelos barba mal semeada. Cerrou os punhos e disse: -Maldição! o moço tem um pé de cabra. Sebastianina serena e confiante procurou acalmar Zé, -não se amofine com esse pormenor. Tem aqui um rapagão que vai dar muito que falar e até muito que calar, digo-lhe eu sem medo de errar, pois só os predestinados é que falam na barriga da mãe. E este, ouviu-o eu, com estes dois que da terra são. Quem viver verá. Será António um infeliz aleijado ou um génio salvador?